Uma tragédia que não vem nos
jornais...
Proêmio
Este texto é resultado de uma transcrição de um artigo
publicado no jornal “O Oeste Paulista” da cidade de Santo Anastácio, SP, no 9º
aniversário de fundação do semanário, em 23 de março de 1940 e de autoria do
Dr. Jorge Washington de Olivaes, médico.
Por uma acaso do destino esta publicação cai em minhas
mãos por intermédio do amigo Lázaro da Silva, o Lazinho, quando pude
transcrever este texto, na verdade uma crônica, uma crônica dos costumes da
época. Uma época difícil, muito difícil para as mulheres...
José Carlos Ramires
14/12/2011
Dr. Jorge Washington
de Olivaes
Médico
Vamos
tratar de um assunto delicado, e pedimos aos nossos possíveis leitores que não
julguem mal de nossas intenções, porque elas são as mais honestas que se possa
imaginar. Não pretendemos fazer sátiras com assunto que muito nos tem
preocupado como médico e como cidadão.
Trata-se
do celibato feminino e da posição da mulher solteira na sociedade. É questão
seríssima e muito delicada, que deve merecer de nós todos uma atenção muito
especial.
Esta
questão requer muitas medidas para a sua solução. A primeira seria uma campanha
educativa para que a mulher tivesse o mesmo respeito, o mesmo carinho, quer
fosse casada ou solteira. Mas, o que vemos? Por defeito de educação, o povo
ridiculariza sem piedade aquelas que ficaram sem casar. O povo só, não.
Espíritos eminentes, escritores de vulto, como Machado de Assis e Jorge Amado,
para citar somente um grande nome do passado e outro grande nome do presente,
satirizam as mulheres que se convencionou chamar de – Solteironas. Apelidos grosseiros
e impiedosos estigmatizam-nas, como se casar fosse o único destino da mulher, e
como se elas tivessem a culpa inteira de não cumprirem esse destino.
Quantas
delas amaram, quantas delas entregaram seus cândidos corações, quantas delas
não depositaram em um homem sua esperança e seu afeto, e o homem objeto de sua
afeição ou as repeliram, ou as enganaram, ou (o que é peor[1])
nunca adivinharam que eram por elas amado?
A
educação, o costume, e nossa civilização impedem ainda que a mulher declare seu
amor a um homem, e teremos ainda dois séculos, caso isso seja permitido, mas
por enquanto a mulher que tiver a audácia de declarar seu amor a um homem será
lapidada[2]
e a primeira pedra será atirada por aquele que receber a declaração de amor...
Quantos
casamentos não geraram por esta causa? Muitas vezes dois entes se amam em
segredo, e passam pela vida, afastados, como dois indiferentes, porque ignoram
o sentimento um do outro, e têm medo ou timidez de provocar uma expansão que
poderá ser uma alegria inaudita, mas que poderá ser também uma desilusão
amaríssima[3]... É o dilema cruel do apaixonado: “Devo
declarar meu amor? Serei aceito, ou repelido?”. E enquanto hesita, outro mais
audacioso adianta-se e obtem a posse daquela que o tímido ama. E a ironia do
destino é pungente[4]
quando a jovem preferiria aquele que a desejava, mas não se declarou, e aceitou
o segundo porque pensou que o primeiro não se declarara, porque não a amava...
Isto como os homens avaliem-se com as mulheres que não têm o “direito” de
declaração amorosa.
Esta
iniciativa na escolha, explica a porcentagem maior de celibato feminino. Daí
também deriva a fatuidade[5]
de muitos homens (a maioria) que se julgam por esse motivo, superior,
infinitamente superior à mulher, seu soberano, seu senhor. A situação da mulher
melhorou muito, se cotejarmos a atual com a do passado, mas ainda não está no
nível em que deveria estar. E se obtiveram a atual posição foi à custa de
sacrifícios ingentes[6],
lutas tremendas, combates épicos contra a tacanhez, a mesquinharia, o
despotismo dos que veem na mulher apenas um instrumento de prazer ou u´a
máquina de trabalhar e procrear[7].
Hoje mesmo, que a evolução é grande, vemos, a cada passo, os sofrimentos, os
martírios que sofrem as que procuram avançar mais um passo na trilha arduamente
percorrida.
Vemos
mesmo na sociedade o paradoxo infame de se tolerar a adúltera casada, repelir
formalmente a pecadora que não se case e ridicularizar ferozmente a celibatária!
Confiamos plenamente no alto
espírito do exmo. Sr. Getulio Vargas e no coração generoso de sua digníssima
esposa Sra. Darcy Vargas para que a mulher seja amparada como mulher-mãe,
mulher-esposa, mulher-filha, mas, sobretudo como MULHER.
Parta de
nosso Brasil, que tem uma legislação social das mais adiantadas e dignas do
mundo, a campanha pela mulher.
Amparemos
e defendamos a família, mas também não lapidemos com o nosso desprezo as que
amam sem o amparo da lei. Não defendemos o amor livre. Desejamos apenas que os
pares amorosos que, por motivo de força maior, não puderam passar pela pretoria[8],
não sejam tratados como indesejáveis.
Quanto
àquelas que fazem do amor uma profissão, tratar-se-ia de pesquisar todas as
causas que levaram essas infelizes à triste condição de gado humano para
remove-las, e se adaptar essas esquecidas da sorte, novamente, ao meio social.
Aquelas que persistissem em continuar a chafurdar no lodo onde pululam, as
vênus tarifadas, seriam passíveis de medidas de profilaxia social.
As que
amam verdadeiramente, as que conhecem a sublimidade do amor, mas que, por
causas irremovíveis, não são casadas legalmente com o homem que amam e com o
qual cohabitam[9]
como se casadas fossem, a essas por que não respeitá-las, por que não lhes
oferecer a nossa amizade, e o nosso apoio?
Nossa
esposa e nós, conhecemos uma criatura excepcional – mulher de raras virtudes,
jovem, formosa, inteligente e culta, de coração boníssimo e alma aberta a todos
os sentimentos generosos, enfim, uma pessôa[10]
cujas altas e raras qualidades de espírito, de caráter e de coração só podem
inspirar admiração sincera e amizade leal. E essa pessôa[11]
admirável, amiga certa de todos os momentos incertos, por motivos que se devem
respeitar, não tem perfeitamente legalizada sua situação amorosa.
Felizmente
já temos no Brasil cidades como São Paulo e Rio onde essas situações são
compreendidas, mercê do alto grau de educação de seus habitantes. Mas vivesse
ela em meio pequeno seria uma réproba[12],
de todos seria repelida, embora estivesse em plano moral, intelectual e
cultural acima de qualquer de seus habitantes. Um verdadeiro absurdo, pois.
Sempre
tivemos a sorte de encontrar mulheres que fazem da vida alguma coisa de
grandioso e de belo, estando à frente dessas, nossa esposa e nossa mãe, cujo
casamento foram 37 anos de ventura que só a morte desmanchou. Por isto somos
defensores acérrimos de todas as mulheres e nos revoltamos contra a situação
que cerca ainda hoje a mulher que não se casa.
Que culpa
têm elas disso? Nenhuma. Queriam, por acaso, que elas pegassem no primeiro que
passasse e o levassem ao juiz de casamentos? Isto não é permitido pelo uso, e
mesmo que fosse não seria aconselhável, porque a um mau casamento, é mil vezes
preferível não casar.
Por que motivo o solteirão, que
não deixa de ser um entre pernicioso à sociedade, porquanto sua fisiologia o
impele à ignomínia do amor vendido, não é traçado[13]
ou siquer[14]
censurado, enquanto procura-se cobrir de ridícula aquela que não se casou? É
uma injustiça que vemos a obrigação de sanar, favorecendo o casamento e
respeitando aquelas que não puderam ou não quizeram[15]
casar-se.
Para esse
auxílio ao casamento, várias providências seriam louváveis, como a preferência
dos casados nos empregos públicos ou particulares, descontos em impostos e
taxas, em meio de locomoção, etc., enfim, regalias econômicas que facilitassem
e favorecessem o matrimônio.
Para
finalizar, desejaríamos dar às mulheres, sobretudo àquelas que moram em cidades
pequenas, onde o padrão de ganho é pequeno, alguns conselhos. Nada de “grã-finismos”[16]
nem luxos exagerados. A elegância e a beleza podem estar presentes sem que
sejam necessários luxos nem exageros. As “grã-finas”, nessas cidades pequenas
(que são 85% das cidades brasileiras), podem ter namorados, “flirts”[17],
etc.. Mas na hora de pensar em casamento, na época atormentada e aflita que o
mundo está passando, o rapaz que deseja se casar pergunta logo a si próprio se
poderá sustentar o luxo e o “grã-finismo” que a senhorita ostenta, muitas vezes
com sacrifícios heróicos das bolsas dos papais. Estes, que muito humanamente
desejam o matrimônio de suas descendentes, não medem despesa quando se trata de
qualquer luxo, que na sua opinião e da própria filha (opinião, a nosso ver
errada), venha a facilitar um casamento. Mas é um erro, porque a ostentação do
luxo nada mais faz do que afastar o rapaz. Eis aí a razão porque vemos mulheres
formosas e amigas do luxo ainda solteiras, não obstante terem tido tempo de
sobra de ter casado (como logicamente desejavam), enquanto outras menos
formosas e menos encantadoras acham logo casamento.
Se alguem
precisar de algum esclarecimento nosso a respeito das razões que aqui
debatemos, com a superficialidade que o minguado espaço de um jornal permite,
estamos dispostos a atendê-lo por carta ou pessoalmente. O campo é vastíssimo e
fascinante, mas a prosa já vai muito longa...
Posfácio
Uma homenagem singela aos bons e velhos tempos dos idos de 1940,
quando critérios e valores morais e éticos eram diferentes, e às vezes injustos
e ultrajantes, como no caso das “solteironas”, nesta crônica inteligente,
ricamente argumentada e até mesmo com um pé à frente no tempo, ao encarar esta
particularidade anacrônica que existia na época.
O enfoque do digníssimo médico Dr. Jorge Washington de Olivaes foi de
um arrojo e de uma visão futurística acerca dos Direitos Fundamentais da Pessoa
e em especial dos Direitos da Mulher...
Dr. Jorge foi médico em nossa cidade durante alguns anos, pelo menos
de 1937 em diante. O seu registro no Conselho Regional de Medicina, foi o de
CRM-BA 3989. Em 1945 foi prefeito nomeado na cidade de Irapuã, estado de São
Paulo. Foi redator no jornal “O Oeste Paulista” de 18 de abril de 1937 a 5 de
junho de 1938. Foi um dos fundadores do famoso “Nosso Clube” de Santo
Anastácio, um clube de entretenimento e de danças, onde a sociedade desenvolvia
os seus dotes dançantes e propiciava encontros de jovens, onde muitas moçoilas
encontraram o seu príncipe encantado. Fez parte da primeira diretoria do Nosso
Clube, sendo seu 2º secretário.
Parabéns a este senhor, que certamente entre nós não se encontra, mas
que nos corações de seus familiares sempre lembrado será, e se por acaso, algum
descendente aparecer, muito feliz ficaria pelo pronto contato com este que vos
escreve...
José Carlos Ramires
jc_ramires@yahoo.com.br
Santo Anastácio, 13
de dezembro de 2011, com 20.196 dias da data da publicação desta crônica no
jornal “O Oeste Paulista”, no dia 23 de março de 1940, no 9º ano de fundação –
edição 453, ano X.
[1] Na
ortografia atual, pior...
[2] Que se
apedrejou, maltratou...
[3] Extremamente
amarga; amarguíssima...
[4] Que
afeta e/ou impressiona profundamente o ânimo, os sentimentos, as paixões; muito
comovente
[5]
presunção, vaidade
[6] muito
grande, enorme, desmedido
[7] Hoje o
correto seria “procriar”
[8] Cargo
que administra a justiça na jurisdição (neste contexto querendo se referir ao
Cartório de Paz, que na época registravam os casamentos civis).
[9] Hoje se
escreve: coabitam
[10] Pela
ortografia atual, escreve-se: pessoa.
[11] Idem
[12] que ou
aquele que foi banido da sociedade; malvado, detestado, infame
[13]
Notificado
[14] O
correto hoje: se quer
[15] Na
ortografia atual: quiseram
[16]
Qualidade de quem vive uma vida de luxo.
[17] Flerte
– relação amorosa leve e inconsequente.
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