quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

UMA CRÔNICA ANTIGA DO DR. JORGE WASHINGTON DE OLIVAES...


Uma tragédia que não vem nos jornais...

Proêmio
Este texto é resultado de uma transcrição de um artigo publicado no jornal “O Oeste Paulista” da cidade de Santo Anastácio, SP, no 9º aniversário de fundação do semanário, em 23 de março de 1940 e de autoria do Dr. Jorge Washington de Olivaes, médico.
Por uma acaso do destino esta publicação cai em minhas mãos por intermédio do amigo Lázaro da Silva, o Lazinho, quando pude transcrever este texto, na verdade uma crônica, uma crônica dos costumes da época. Uma época difícil, muito difícil para as mulheres...
José Carlos Ramires
14/12/2011

Dr. Jorge Washington de Olivaes
Médico

            Vamos tratar de um assunto delicado, e pedimos aos nossos possíveis leitores que não julguem mal de nossas intenções, porque elas são as mais honestas que se possa imaginar. Não pretendemos fazer sátiras com assunto que muito nos tem preocupado como médico e como cidadão.
            Trata-se do celibato feminino e da posição da mulher solteira na sociedade. É questão seríssima e muito delicada, que deve merecer de nós todos uma atenção muito especial.
            Esta questão requer muitas medidas para a sua solução. A primeira seria uma campanha educativa para que a mulher tivesse o mesmo respeito, o mesmo carinho, quer fosse casada ou solteira. Mas, o que vemos? Por defeito de educação, o povo ridiculariza sem piedade aquelas que ficaram sem casar. O povo só, não. Espíritos eminentes, escritores de vulto, como Machado de Assis e Jorge Amado, para citar somente um grande nome do passado e outro grande nome do presente, satirizam as mulheres que se convencionou chamar de – Solteironas. Apelidos grosseiros e impiedosos estigmatizam-nas, como se casar fosse o único destino da mulher, e como se elas tivessem a culpa inteira de não cumprirem esse destino.
            Quantas delas amaram, quantas delas entregaram seus cândidos corações, quantas delas não depositaram em um homem sua esperança e seu afeto, e o homem objeto de sua afeição ou as repeliram, ou as enganaram, ou (o que é peor[1]) nunca adivinharam que eram por elas amado?
            A educação, o costume, e nossa civilização impedem ainda que a mulher declare seu amor a um homem, e teremos ainda dois séculos, caso isso seja permitido, mas por enquanto a mulher que tiver a audácia de declarar seu amor a um homem será lapidada[2] e a primeira pedra será atirada por aquele que receber a declaração de amor...
            Quantos casamentos não geraram por esta causa? Muitas vezes dois entes se amam em segredo, e passam pela vida, afastados, como dois indiferentes, porque ignoram o sentimento um do outro, e têm medo ou timidez de provocar uma expansão que poderá ser uma alegria inaudita, mas que poderá ser também uma desilusão amaríssima[3]...  É o dilema cruel do apaixonado: “Devo declarar meu amor? Serei aceito, ou repelido?”. E enquanto hesita, outro mais audacioso adianta-se e obtem a posse daquela que o tímido ama. E a ironia do destino é pungente[4] quando a jovem preferiria aquele que a desejava, mas não se declarou, e aceitou o segundo porque pensou que o primeiro não se declarara, porque não a amava... Isto como os homens avaliem-se com as mulheres que não têm o “direito” de declaração amorosa.
            Esta iniciativa na escolha, explica a porcentagem maior de celibato feminino. Daí também deriva a fatuidade[5] de muitos homens (a maioria) que se julgam por esse motivo, superior, infinitamente superior à mulher, seu soberano, seu senhor. A situação da mulher melhorou muito, se cotejarmos a atual com a do passado, mas ainda não está no nível em que deveria estar. E se obtiveram a atual posição foi à custa de sacrifícios ingentes[6], lutas tremendas, combates épicos contra a tacanhez, a mesquinharia, o despotismo dos que veem na mulher apenas um instrumento de prazer ou u´a máquina de trabalhar e procrear[7]. Hoje mesmo, que a evolução é grande, vemos, a cada passo, os sofrimentos, os martírios que sofrem as que procuram avançar mais um passo na trilha arduamente percorrida.
            Vemos mesmo na sociedade o paradoxo infame de se tolerar a adúltera casada, repelir formalmente a pecadora que não se case e ridicularizar ferozmente a celibatária!
Confiamos plenamente no alto espírito do exmo. Sr. Getulio Vargas e no coração generoso de sua digníssima esposa Sra. Darcy Vargas para que a mulher seja amparada como mulher-mãe, mulher-esposa, mulher-filha, mas, sobretudo como MULHER.   
            Parta de nosso Brasil, que tem uma legislação social das mais adiantadas e dignas do mundo, a campanha pela mulher.
            Amparemos e defendamos a família, mas também não lapidemos com o nosso desprezo as que amam sem o amparo da lei. Não defendemos o amor livre. Desejamos apenas que os pares amorosos que, por motivo de força maior, não puderam passar pela pretoria[8], não sejam tratados como indesejáveis.
            Quanto àquelas que fazem do amor uma profissão, tratar-se-ia de pesquisar todas as causas que levaram essas infelizes à triste condição de gado humano para remove-las, e se adaptar essas esquecidas da sorte, novamente, ao meio social. Aquelas que persistissem em continuar a chafurdar no lodo onde pululam, as vênus tarifadas, seriam passíveis de medidas de profilaxia social.
            As que amam verdadeiramente, as que conhecem a sublimidade do amor, mas que, por causas irremovíveis, não são casadas legalmente com o homem que amam e com o qual cohabitam[9] como se casadas fossem, a essas por que não respeitá-las, por que não lhes oferecer a nossa amizade, e o nosso apoio?
            Nossa esposa e nós, conhecemos uma criatura excepcional – mulher de raras virtudes, jovem, formosa, inteligente e culta, de coração boníssimo e alma aberta a todos os sentimentos generosos, enfim, uma pessôa[10] cujas altas e raras qualidades de espírito, de caráter e de coração só podem inspirar admiração sincera e amizade leal. E essa pessôa[11] admirável, amiga certa de todos os momentos incertos, por motivos que se devem respeitar, não tem perfeitamente legalizada sua situação amorosa.
            Felizmente já temos no Brasil cidades como São Paulo e Rio onde essas situações são compreendidas, mercê do alto grau de educação de seus habitantes. Mas vivesse ela em meio pequeno seria uma réproba[12], de todos seria repelida, embora estivesse em plano moral, intelectual e cultural acima de qualquer de seus habitantes. Um verdadeiro absurdo, pois.
            Sempre tivemos a sorte de encontrar mulheres que fazem da vida alguma coisa de grandioso e de belo, estando à frente dessas, nossa esposa e nossa mãe, cujo casamento foram 37 anos de ventura que só a morte desmanchou. Por isto somos defensores acérrimos de todas as mulheres e nos revoltamos contra a situação que cerca ainda hoje a mulher que não se casa.
            Que culpa têm elas disso? Nenhuma. Queriam, por acaso, que elas pegassem no primeiro que passasse e o levassem ao juiz de casamentos? Isto não é permitido pelo uso, e mesmo que fosse não seria aconselhável, porque a um mau casamento, é mil vezes preferível não casar.
Por que motivo o solteirão, que não deixa de ser um entre pernicioso à sociedade, porquanto sua fisiologia o impele à ignomínia do amor vendido, não é traçado[13] ou siquer[14] censurado, enquanto procura-se cobrir de ridícula aquela que não se casou? É uma injustiça que vemos a obrigação de sanar, favorecendo o casamento e respeitando aquelas que não puderam ou não quizeram[15] casar-se.
            Para esse auxílio ao casamento, várias providências seriam louváveis, como a preferência dos casados nos empregos públicos ou particulares, descontos em impostos e taxas, em meio de locomoção, etc., enfim, regalias econômicas que facilitassem e favorecessem o matrimônio.
            Para finalizar, desejaríamos dar às mulheres, sobretudo àquelas que moram em cidades pequenas, onde o padrão de ganho é pequeno, alguns conselhos. Nada de “grã-finismos”[16] nem luxos exagerados. A elegância e a beleza podem estar presentes sem que sejam necessários luxos nem exageros. As “grã-finas”, nessas cidades pequenas (que são 85% das cidades brasileiras), podem ter namorados, “flirts”[17], etc.. Mas na hora de pensar em casamento, na época atormentada e aflita que o mundo está passando, o rapaz que deseja se casar pergunta logo a si próprio se poderá sustentar o luxo e o “grã-finismo” que a senhorita ostenta, muitas vezes com sacrifícios heróicos das bolsas dos papais. Estes, que muito humanamente desejam o matrimônio de suas descendentes, não medem despesa quando se trata de qualquer luxo, que na sua opinião e da própria filha (opinião, a nosso ver errada), venha a facilitar um casamento. Mas é um erro, porque a ostentação do luxo nada mais faz do que afastar o rapaz. Eis aí a razão porque vemos mulheres formosas e amigas do luxo ainda solteiras, não obstante terem tido tempo de sobra de ter casado (como logicamente desejavam), enquanto outras menos formosas e menos encantadoras acham logo casamento.
            Se alguem precisar de algum esclarecimento nosso a respeito das razões que aqui debatemos, com a superficialidade que o minguado espaço de um jornal permite, estamos dispostos a atendê-lo por carta ou pessoalmente. O campo é vastíssimo e fascinante, mas a prosa já vai muito longa...

Posfácio

Uma homenagem singela aos bons e velhos tempos dos idos de 1940, quando critérios e valores morais e éticos eram diferentes, e às vezes injustos e ultrajantes, como no caso das “solteironas”, nesta crônica inteligente, ricamente argumentada e até mesmo com um pé à frente no tempo, ao encarar esta particularidade anacrônica que existia na época.
O enfoque do digníssimo médico Dr. Jorge Washington de Olivaes foi de um arrojo e de uma visão futurística acerca dos Direitos Fundamentais da Pessoa e em especial dos Direitos da Mulher...

Dr. Jorge foi médico em nossa cidade durante alguns anos, pelo menos de 1937 em diante. O seu registro no Conselho Regional de Medicina, foi o de CRM-BA 3989. Em 1945 foi prefeito nomeado na cidade de Irapuã, estado de São Paulo. Foi redator no jornal “O Oeste Paulista” de 18 de abril de 1937 a 5 de junho de 1938. Foi um dos fundadores do famoso “Nosso Clube” de Santo Anastácio, um clube de entretenimento e de danças, onde a sociedade desenvolvia os seus dotes dançantes e propiciava encontros de jovens, onde muitas moçoilas encontraram o seu príncipe encantado. Fez parte da primeira diretoria do Nosso Clube, sendo seu 2º secretário.

Parabéns a este senhor, que certamente entre nós não se encontra, mas que nos corações de seus familiares sempre lembrado será, e se por acaso, algum descendente aparecer, muito feliz ficaria pelo pronto contato com este que vos escreve...

José Carlos Ramires
jc_ramires@yahoo.com.br

Santo Anastácio, 13 de dezembro de 2011, com 20.196 dias da data da publicação desta crônica no jornal “O Oeste Paulista”, no dia 23 de março de 1940, no 9º ano de fundação – edição 453, ano X.


[1] Na ortografia atual, pior...
[2] Que se apedrejou, maltratou...
[3] Extremamente amarga; amarguíssima...
[4] Que afeta e/ou impressiona profundamente o ânimo, os sentimentos, as paixões; muito comovente

[5] presunção, vaidade
[6] muito grande, enorme, desmedido
[7] Hoje o correto seria “procriar”
[8] Cargo que administra a justiça na jurisdição (neste contexto querendo se referir ao Cartório de Paz, que na época registravam os casamentos civis).
[9] Hoje se escreve: coabitam
[10] Pela ortografia atual, escreve-se: pessoa.
[11] Idem
[12] que ou aquele que foi banido da sociedade; malvado, detestado, infame
[13] Notificado
[14] O correto hoje: se quer
[15] Na ortografia atual: quiseram
[16] Qualidade de quem vive uma vida de luxo.
[17] Flerte – relação amorosa leve e inconsequente.

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